Instante

Rubem Braga

 

            No centro do dia cinzento, no meio da banal viagem, e nesse momento em que a custo equilibramos todos os motivos de agir e de cruzar os braços, de insistir e desesperar, e ficamos quietos, neutros e presos ao mais medíocre equilíbrio – foi então que aconteceu. Eu vinha sem raiva nem desejo – no fundo do coração as feridas mal cicatrizadas, e a esperança humilde como ave doméstica – eu vinha como um homem quem vem e vai, e já teve noites de tormenta e madrugadas de seda, e dias vividos com todos os nervos e com a toda a alma, e charnecas de tédio atravessadas com a longa paciência dos pobres – eu vinha como um homem que faz parte da sua cidade, e é menos um homem que um transeunte, e me sentia como aquele que se vê nos cartões postais, de longe, dobrando uma esquina – eu vinha como um elemento altamente banal de paletó e gravata, integrado no horário coletivo, acertando a batida do meu pulso pelo ritmo da faina quotidiana – eu vinha, portanto, extremamente sem importância, mas tendo em mim a força da conformação, da resistência e da inércia que faz com que um minuto depois das grandes revoluções e catástrofes o sapateiro volte a sentar na sua banca e o linotipista na sua máquina, e a cidade apareça estranhamente normal – eu vinha como um homem de quarenta anos que dispõe de regular saúde, e está com suas letras nos bancos regularmente reformadas e seus negócios sentimentais aplacados de maneira cordial e se sente bem disposto para as tarefas da rotina, e com pequenas reservas para enfrentar eventualidades não muito excêntricas – e que cessou de fazer planos gratuitos para a vida, mas ainda não começou a levar em conta a faina da própria morte – assim eu vinha, como quem ama as mulheres de seu país, as comidas de sua infância e as toalhas do seu lar – quando aconteceu. Não foi algo que tivesse qualquer consequência, ou implicasse em novo programa de atividades; nem uma revelação do Alto nem uma demonstração súbita e cruel da miséria de nossa condição, como às vezes já tive.

            Foi apenas, um instante antes de se abrir um sinal numa esquina, dentro de um grande carro negro, uma figura de mulher que nesse instante me fitou e sorriu com seus grandes olhos de azul límpido e a boca fresca e viva; que depois ainda moveu de leve os lábios como se fosse dizer alguma coisa – e se perdeu, a um arranco do carro, na confusão do tráfego da rua estreita e rápida. Mas foi como se, preso na penumbra da mesma cela eternamente, eu visse uma parede se abrir sobre uma paisagem úmida e brilhante de todos os sonhos de luz, com vento agitando árvores e derrubando flores, e o mar cantando ao sol.

 

Temas: Vida; Mulher