Diário de um perseguido político

Rubem Braga

 

            São notas extraídas e levemente modificadas do diário de um amigo meu. O local é o Rio, começos de 1936, e meu amigo, a que chamarei Paulo, é um jornalista de 24 anos, simpatizante do comunismo, procurado pela polícia que realiza prisões em massa depois do golpe de novembro de 1935. Suprimi muitas referências a fatos políticos da ocasião e mesmo a alguns problemas pessoais.

 

***

 

            15 de fevereiro – Minha situação aqui na pensão é insustentável. Vieram morar aqui dois estudantes integralistas. Hoje no almoço um deles falou comigo. Tinham-lhe dito que eu era jornalista; em que jornal eu trabalhava? Respondi que em jornal nenhum. Diante do embaraço dele, expliquei: na revista Eu Sei Tudo. Puxou conversa sobre política, mas eu disse com superioridade:   

            – Minha política é o Flamengo!

            Ele observou gravemente que o futebol serve para distrair o povo de seus problemas. Enquanto o povo está discutindo futebol o comunismo está tramando outros golpes sangrentos. Lenine disse que a religião é o ópio do povo. O futebol também, é uma espécie de maconha. Explicou que citava Lenine porque se tratava de um gênio, mas gênio inclinado para o mal.

            Falou muito e fiquei calado, fazendo o possível para fazer um ar de admiração atenta; mas creio que tinha apenas a cara de um palerma. Eu me pergunto se ele não é capaz de telefonar para o Eu Sei Tudo e perguntar o que faz lá um sujeito chamado Lauro M. Guedes, que é meu nome aqui na pensão.

            Dia 16 – O outro integralista me perguntou se já li alguma obra de Spengler. Respondi que não. Ele fez questão de me emprestar um livro.

            Dia 18 – Ontem me arrisquei, indo à cidade. Procurei o dr. Fontoura no seu consultório. Ele ficou assustadíssimo. Disse que eu fazia uma imprudência enorme indo ao Centro, pois meu nome saía num jornal, envolvido na fundação de uma Associação que a polícia descobriu ser comunista. Que a situação dele também era delicada, não convinha que eu o procurasse. Deu-me 50 mil réis.

            Dia 21 – O que me aconteceu foi surpreendente. Fui ao Centro procurar o senador, com quem, por sinal, não consegui falar. Estive com o Clóvis, que me falou da prisão, ontem, de vários amigos, inclusive o Dunga. Quando subia ao ônibus, alguém me agarrou pelo braço. Tremi de susto. Voltei-me, era um sujeito desconhecido, de chapéu. Perguntou se me lembrava dele. Embaraçado, disse-lhe que não podia perder aquele ônibus, ele disse que vinha comigo. Só podia ser tira, ainda mais de chapéu.

            Não era tira, era careca. Não o reconheci logo porque tirou os grandes bigodes louros que sempre usou. É um securitário, Edgard, que conheci por ocasião da greve de 1934. Antes de chegar à pensão, tive um palpite; saltei do ônibus com Edgard e telefonei do café da esquina perguntando se havia algum recado para mim. Dona Dolores me disse que estavam lá dois amigos me esperando, perguntou se eu queria que ela chamasse. Como não dei meu endereço a ninguém, vi logo do que se tratava. De qualquer modo, esperei; dona Dolores voltou e disse que os dois já tinham ido embora e não tinham deixado os nomes. Depois, mais baixo, disse: "não venha aqui não". Estou escrevendo da casa do Edgard, onde vou dormir esta noite.

            Dia 24 – Edgard é formidável. Não me deixou sair de sua casa. Sua mulher é muito simpática, têm uma filhinha de dois anos. Preciso arranjar dinheiro e dar o fora daqui, pois se por acaso eu for preso aqui, Edgard também irá comigo, e talvez até Alice. Aliás, Alice é muito esclarecida. Edgard foi à pensão ver se trazia minhas coisas, mas d. Dolores disse que a polícia carregou tudo. Até o livro de Spengler foi em cana. Ainda bem que meus papéis mais importantes estavam na pasta.

            Dia 26 – Telefonei a Clóvis e ele veio me ver ontem. A polícia me procurou também na redação. Ontem foi presa a Linda, mulher do Alcir, saiu nos jornais. Com um bilhete meu, Clóvis procurou o senador, que me mandou 300 mil réis. Disse a Clóvis que devia muitos favores ao meu falecido pai, o que é verdade; de qualquer modo, foi alinhado. Eu podia fugir para Minas com esse dinheiro, mas tive que pedir a Clóvis para me comprar roupa, escova de dentes, chinelos etc. pois estava  usando as roupas do Edgard, que é bem mais baixo do que eu. Como não tenho o que fazer, eu mesmo quis lavar minha roupa, mas Alice não deixa de modo algum. Clóvis foi à editora ver se arranja uma tradução qualquer para eu fazer, com uma parte do dinheiro adiantada, mas o diretor está em São Paulo.

            Dia 28 – Estou com os nervos arrebentados por causa de Alice. Quando Edgard vai para a Companhia... Seria o cúmulo da sem-vergonhice! Se eu tivesse qualquer coisa com essa mulher seria o último dos cachorros.         

            3 de março – Sou.

 

Temas: Ditadura; Adultério; Conflito