Galeria

Rubem Braga

 

            E então, no fim da tarde, quando eu vinha pela avenida, depois de andar por tantas e tão estreitas pequenas ruas atulhadas de bondes e caminhões, e passar o dia a discutir com homens comerciais, me senti tão cansado no fim da tarde quente, e tão desanimado de minha vida e de meus negócios em eterno atraso, e tão vazio de amor que resolvi esquecer tudo, tomei um quarto no Hotel Avenida.

            Tomei um quarto no Hotel Avenida em cima da Galeria Cruzeiro; mas à medida que a Galeria recuava no tempo (os bondes ainda passavam lá por baixo, eu podia ouvir seu ruído de meu quarto) eu avançava na idade, completara na véspera 54 anos e não estava muito bem de saúde. A luz de meu quarto era fraca e amarela, eu estava com a minha roupa feita no alfaiate Lima, em Itaúna, calçava botinas amarelas e escrevera minha profissão no livro do hotel: lavrador.

            Tinha na mão algumas pequenas notas e as contava, faziam um total de 26 mil réis, com mais alguns níqueis 26 mil e duzentos. Pus esse dinheiro em cima da mesa, e o contemplava e pensava assim: ao fim de 43 anos de trabalho na lavoura, porquanto aos dez anos já pegava no cabo da enxada, eis o que resta a um homem trabalhador. Isto, uma propriedade hipotecada, a mulher doente, uma filha solteirona que dá faniquitos, um filho casado que mora longe e nunca se lembra de escrever, outro filho na penitenciária de Ouro Preto com um resto de seis anos de pena, e uma conta do hotel por pagar. Sem falar nos quatro filhos enterrados, que tiveram a sorte de morrer crianças. Sem falar neste relógio (quanto vale?), neste canivete preto, neste fumo de rolo e nesta vergonha na cara.

            Devia ir à polícia fazer queixa? Mas ali na "Noite" estava uma história igualzinha à que acontecera comigo, chamava-se conto do vigário, e o jornal ainda zombava do prejudicado dizendo que ele quis ser esperto. Então me deu um desânimo tão grande, eu estava cansado e suado, estiquei-me na cama assim vestido, botei os pés com as botinas amarelas em cima do cobertor vermelho e repeti com humilhação o meu nome como se fosse um juiz que estivesse falando e me condenando: Anacleto Cunha de Miranda. Então lentamente percebi que não tinham sido os dois vigaristas, tinha sido de um modo geral toda a minha vida que se iludira e falhara, ali estava na minha mão o canivete preto que eu tirara do bolso para picar fumo, o certo era enfiá-lo naqueles dois miseráveis, ou na minha própria garganta.

            Levantei-me, olhei no espelho minha cara magra, suada, meus bigodes brancos amarelados, meus cabelos ralos, e desci, passei na portaria com uma vontade insensata de pedir a conta só para saber quanto é que não podia pagar (do sábado à quarta-feira eram quatro dias, fiz pequenas contas mentais), depois fiquei de pé, trêmulo quando um bonde Ipanema-T.N. se aproximava, trêmulo de vontade e medo de me jogar debaixo dele – afinal avancei, o bonde não existia mais porque tinham tirado há muito tempo o bonde dali, e eu percebi que estava engordando e ficando mais moço e me chamava Rubem Braga, e fui andando tristemente pela calçada cheia de gente apressada, ainda muito mortificado, apenas com um leve, distante, humilde, pobre alívio.

 

Tema: Injustiça; Tristeza