Quem sabe Deus está ouvindo

Rubem Braga

 

            Outro dia eu estava distraído, chupando um caju na varanda, e fiquei com a castanha na mão, sem saber onde botar. Perto de mim havia um vaso de antúrio; pus a castanha ali, calcando-a um pouco para entrar na terra, sem sequer me dar conta do que fazia.

            Na semana seguinte a empregada me chamou a atenção: a castanha estava brotando. Alguma coisa verde saía da terra, em forma de concha. Dois ou três dias depois acordei cedo, e vi que durante a noite aquela coisa verde lançara para o ar um caule com pequenas folhas. É impressionante a rapidez com que essa plantinha cresce e vai abrindo folhas novas. Notei que a empregada regava com especial carinho a planta, e caçoei dela:

            – Você vai criar um cajueiro aí?

            Embaraçada, ela confessou: tinha de arrancar a mudinha, naturalmente; mas estava com pena.

            – Mas é melhor arrancar logo, não é?

            Fiquei em silêncio. Seria exagero dizer: silêncio criminoso – mas confesso que havia nele um certo remorso. Um silêncio covarde. Não tenho terra onde plantar um cajueiro, e seria uma tolice permitir que ele crescesse ali mais alguns centímetros, sem nenhum futuro. Eu fora o culpado, com meu gesto leviano de enterrar a castanha, mas isto a empregada não sabe: ela pensa que tudo foi obra do acaso. Arrancar a plantinha com a minha mão – disso eu não seria capaz; nem mesmo dar ordem para que ela o fizesse. Se ela o fizer, darei de ombros e não pensarei mais no caso; mas que o faça com sua mão, por sua iniciativa. Para a castanha e sua linda plantinha seremos dois deuses contrários, mas igualmente ignaros: eu, o deus da Vida; ela, o da Morte.

            Hoje pela manhã ela começou a me dizer alguma coisa – "seu Rubem, o cajueiro..." –, mas o telefone tocou, fui atender, e a frase não se completou. Agora mesmo ela voltou da feira; trouxe um pequeno vaso com terra e transplantou para ele a mudinha.

            Veio me mostrar:

            – Eu comprei um vaso...

            – Ahn...

            Depois de um silêncio, eu disse:

            – Cajueiro sente muito a mudança, morre à toa...

            Ela olhou a plantinha e disse com convicção:

            – Esse aqui não vai morrer, não senhor.

            Eu devia lhe perguntar o que ela vai fazer com aquilo, daqui a uma, duas semanas. Ela espera, talvez, que eu o leve para o quintal de algum amigo; ela mesma não tem onde plantá-lo. Senti que ela tivera medo de que eu a censurasse pela compra do vaso e ficara aliviada com minha indiferença. Antes de me sentar para escrever, eu disse, sorrindo, uma frase profética, dita apenas por dizer:

            – Ainda vou chupar muito caju desse cajueiro!

            Ela riu muito, depois ficou séria, levou o vaso para a varanda, e, ao passar por mim na sala, disse baixo, com certa gravidade:

            É capaz mesmo, seu Rubem; quem sabe Deus está ouvindo o que o senhor está dizendo...

            Mas eu acho, sem falsa modéstia, que Deus deve andar muito ocupado com as bombas de hidrogênio e outros assuntos maiores.

 

            Temas: Natureza; Deus